TAVERNA DA TIA LEONARDA
Por volta dos anos 1875-1877 surgiu uma tertúlia no Bairro Alto que funcionou em torno de um dos futuros membros do Grupo do Leão, Francisco Vilaça, onde também ia António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro e o muito jovem Alberto de Oliveira. Acontecia na Taverna da Tia Leonarda, na Rua de Luz Soriano, 21 (Rua do Carvalho até 1887), actual restaurante Adega do Tagarro.
"[A] Tia Leonarda, antiga casa de petiscos da velha Rua do Carvalho, hoje de Luz Soriano, esquina da Travessa das Mercês, casa instituída por uma provinciana de boas formas e simpático aspecto que atraiu à locanda escolhida freguesia de artistas e literatos e onde o caricaturista Bordalo Pinheiro, com vários redactores do Século e de outros jornais, tiveram noites inolvidáveis", escreveu Eduardo Fernandes (pseud. Esculápio, 1870-1945) numa conferência em 1941.
A tertúlia incluiu, entre outros, e não necessariamente ao mesmo tempo, Alexandre Herculano (1810-1877), João Cristino da Silva (1829-1877) - pai de Ribeiro Cristino -, Eduardo Garrido (1842-1912), João da Câmara (1852-1908), José Queiroz (1856-1920), António Arroio (1856-1934), Gualdino Gomes (1857-1948), José Ricardo (1859-1925, actor), Luís Fortunato da Fonseca (1859-1934) e seu irmão João Luís da Fonseca (?-?), Arnaldo da Fonseca (1869-1936?), fotógrafo e depois diplomata, Augusto Gil (1873-1929, referido aqui). Quase metade destes nomes foram habituais no Grupo do Leão. (Estas referências estão maioritariamente em AA.VV., 1959: 377 e RAMOS, 1964: 193, embora tais fontes erradamente chamem à proprietária Leocádia e não Leonarda.) A taverna também foi frequentada por António Félix de Araújo Viana (?-?), letrista de fado e humorista, que usava o pseudónimo Antino Vigas, e Gervásio Lobato (1850-1895), jornalista e escritor – colaborador no Almanaque Contemporâneo de Alberto de Oliveira –, que usava o pseudónimo Rabecão Grande, como se depreende de um texto n'O Pimpão em 1885.
Naquele ano o Correio da Manhã falou da taverna como sítio "onde muitos rapazes da nossa alta sociedade iam no Inverno passado arranjar umas ceias que tinham fama nos grupos da casa Garrett", ou seja, era destino gastronómico de frequentadores da Leitaria Garrett, ao Chiado.
Rafael Bordalo Pinheiro referiu-se ao espaço aqui, caricaturando o cozinheiro, e aqui, em 1886, insinuando-o como lugar de engates, e ainda aqui, em 1889, evocando o "bacalhau com grelos" ali servido. O aspecto bas-fond, de gatunagem, vê-se numa notícia de O Economista de 1893. Eduardo de Noronha anotou igualmente o lugar (NORONHA, 1913: 295).
O nome completo da proprietária era Leonarda Maria Nogueira. Morreu, com idade avançada, em Dezembro de 1909. A Ilustração Portuguesa publicou uma nota nesse mês, com fotografia dela e da fachada do estabelecimento, lendo-se: "foi uma taberneira famosa e a sua tasca da Rua Luz Soriano o último lugar onde se divertiu a passada geração de artistas, escritores, jornalistas e boémios. Diante dos pratos deliciosos que ela preparava dispendeu-se muito espírito, houve altas discussões, combinaram-se partidas estrondosas, imaginaram-se loucuras. A tia Leonarda faleceu em 2 de Dezembro e no seu funeral incomporaram-se muitos dos antigos frequentadores da casa, hoje colocados em lugares de destaque nas artes e na política".
Um registo importante da ligação do pintor António Ramalho à taverna é uma aguarela, executada em data indeterminada mas sem dúvida no século XIX, pertencente à colecção da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves. No verso tem um papel colado, datado de 1934, em que se lê: "Retrato do diplomata Leopoldo d'Oliveira, em criança, pintado por António Ramalho, em casa da célebre Tia Leonarda, Rua Luz Soriano. A obra pertenceu à colecção do cônsul Alberto d'Oliveira". Foi comprada em 1954 pela casa-museu ao escritor Ângelo Pereira (1886-1975). É sabido que Alberto de Oliveira coleccionava trabalhos dos artistas do Grupo do Leão, provavelmente dispersados após a sua morte. O retratado, Leopoldo de Oliveira (?-?) – ignoro se com algum parentesco a Alberto –, foi de facto diplomata, em Moçambique e mais tarde, entre outros lugares, Paris (p. 253 do PDF).
[Uma nota ainda, embora sem certeza absoluta: Leonarda terá sido casada com um Joaquim Afonso Nogueira – pelo que usou também o nome de Leonarda Afonso Nogueira –, pais de Carlos Afonso Nogueira (1875-?). Creio estar certo sobre estas relações por haver documentos sobre este Carlos que, em 1914, deu-se como "morador na Rua Luz Soriano, n.º 19, sobreloja, esquerdo, freguesia das Mercês", ou seja na porta ao lado (ou número antigo) da taverna. Sabe-se disto por um requerimento que ele enviou nesse ano à Câmara dos Deputados pedindo "que os seus serviços sejam reconhecidos pelo Congresso da República" por ter "tomado parte activa na revolução de Outubro de 1910, que implantou a República em Portugal, como prova com o documento conjunto". O documento, na essência, certificava-o como membro da Carbonária Portuguesa. O pedido deu entrada em Agosto de 1915 e em Setembro foi de facto reconhecido como "revolucionário civil", a distinção oficial da época por ter participado no 5 de Outubro.]
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imagens: ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA (Hemeroteca Digital de Lisboa), INTERNET ARCHIVE, MATRIZNET
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Taverna da Tia Leonarda em 1909, na Rua de Luz Soriano. Hoje é o restaurante Adega do Tagarro.
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Leonarda Maria Nogueira em foto publicada em 1909.
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O cozinheiro da Taverna da Tia Leonarda caricaturado por Rafael Bordalo Pinheiro em 1886.
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O diplomata Leopoldo de Oliveira em criança, retratado por António Ramalho numa aguarela executada na Taverna da Tia Leonarda.